segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Tudo em vão

Eu não preciso pescar os peixes que se ofertam ao meu anzol. Lançam-se ao meu poder como se estivessem encantados. Podem estar. Nem sei. No caminho para casa encontro as mariposas que pousam no fundo do meu corpo. São dores de viver sem a certeza de nada. Meu coração se fecha e não quer mais bater. Quer pousar noutros corpos como as mariposas que pousam em mim. Tento reanimá-lo:

- Veja aquela moça! Veja aquele rapaz! Veja aquela criança! Veja aquele velho!

Ele me responde sem ritmo, quase parando:

O que vês é uma reflexão... Sombra em vão, que em você aos poucos se vai.

sábado, 31 de outubro de 2009

Palavras polinizadas

Eu queria que meus gestos sublimassem no espaço profundo do seu entendimento. Não faço discurso demagogo. Eu perdôo, mas não esqueço. Sofro com os olhos colados na foto que chora. Eu não perco a poesia. Não vejo só a sua forma, só a superfície. Vejo o amor, numa caneca de chá! Vejo a pedra cortar com dor os meus preconceitos. Minha sombra quer dançar:

- Podes ir, mas eu não vou.

Louvo-te e clamo-te. Os despojos do seu corpo residem em mim como em uma lápide do São João Batista.

Choro no fim do poema.

domingo, 6 de setembro de 2009

Primaveras casuais

"(...) vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação (...)”.

Belchior


Ah! Que saudade que eu tenho de Eulália... Como era graciosa em suas formas ainda pouco reveladas naqueles vestidos de flores minúsculas. Sua aura cândida de menina interiorana era fronteiriça. Seu perfume de alfazema causava-me frêmitos da flor da idade. Quando ia passar os finais de semana em São Luiz do Paraitinga ela me fazia companhia. Sua avó estendia a roupa no quintal e entre os lençóis ao vento brincávamos de esconde-esconde. Ela era bem mais nova que eu, mas isso não era empecilho para nossas brincadeiras. Nadávamos no Paraibuna...

Agora que bato a teclas da máquina de escrever lembro da sua meninice que eu vi desaparecer. No dia em que ela fez anos dei-lhe um livrinho do Monteiro Lobato. Ela leu e releu e depois pediu mais um. No dia em que cheguei com o outro livro ela estava super ansiosa e nem queria saber de brincar, só de ler. Pior do que isso: não queria saber de mim! Levantei o livro acima da minha cabeça e por minutos deixei-a pulando em volta. Depois deixei pender os braços. Isso sempre se repetia. Um dia propus uma troca: ela ganhava os presentes, em troca eu tocava-lhe os lábios, os cabelos - confesso que havia nisso um prazer que na época eu considerava o maior de todos - e ela concordou.
Todo fim de semana era um presente e, enquanto ela lia ou se maquilava ou escrevia ou comia, eu deslizava delicadamente a mão pelos seus cabelos, pela sua boca, chegava a passar - sem que ela percebesse - pelos seus peitos e rapidamente subia até sua face.

No dia do meu aniversário docemente escorreguei a mão ao longo de seu tronco, sentindo a maciez de sua pele de moça nova - e como se conhecesse bem aquele caminho coloquei a mão sobre seu sexo, vi nitidamente o momento em que ela interrompeu a leitura. Paralisou-se - e enrijecendo meus dedos, definindo meu afago, sentir abrir aquela flor oculta, desnudando completamente o mistério da natureza. Subi a mão, voltando a passear livremente pelo seu talhe. Com uma mão acariciava seus olhos e com a outra segurava-lhe pelas costas. Venci-a com o poder do meu carinho.

Espaçadamente ela deu um grito que se assemelhava a um riso moço que ressoava no vento. Era a música do momento.

Amei-a. Numa única fusão de corolas decepadas no auge do seu esplendor descobri o que era o amor...

Dizer que nunca mais a vi seria exagero, mas a Eulália dos tenros anos e pudores morreu para sempre. Numa única florada senti o seu perfume misturar-se ao meu e sumir nas primaveras dos anos.

domingo, 14 de junho de 2009

Magô e o outro mundo

Magô tem oito anos e sonha em conhecer outro mundo. Esse daqui ela já se cansou, antes mesmo de desbravar. É poluição, gente mal educada, violência, problemas, problemas e... problemas. No seu colégio ela deixa os professores loucos com as suas perguntas mirabolantes.

- Em outro mundo faz frio? Acha que eu devo levar casaco o ir de biquíni? E a comida? Já vi astronauta com uns tubinhos de comida prática, mas será que lá eu vou sentir fome? E sede? A água vai congelar assim que eu atravessar o portal desse mundo ou vai evaporar?

Ela não dava tempo para respostas e uma ia atropelando a outra, de tal modo que quando o professor pensava em responder a primeira ela já queria saber da última. Conseqüência disso: ninguém solucionava suas dúvidas e elas iam crescendo cada vez mais. Deram a ela a sugestão de anotá-las. Mas uma atrapalhava a outra e não saia nada no papel. Seus amigos não conseguiam brincar com ela, pois toda vez em que se aproximavam ela dizia que estava se preparando para a partida.

Um dia na saída da aula ela correu para encontrar com a sua mãe, do outro lado da rua, mas no meio do caminho ela desapareceu. Surgiu num lugar diferente, úmido, rugoso.

E ela meio tonta nem perguntou onde estava e já começou a comemorar o seu teletransporte. Viu alguma coisa no escuro.

-Aurt rourew treserhy ... Câmbio?

- Que língua é essa?

- Você fala minha língua? Que bom. Facilita um pouco. Então, vamos passear pelo mundo outro que agora e meu também. Vamos!

Puxou o ser pela mão a correu por um espaço apertadinho. Procurou um raiozinho de luz que fosse, mas não encontrou. Tudo escuro e frio. Frio. Pôde vivenciar todas as suas perguntas. – 

Onde estão as cores desse mundo? Qual mundo é? O da Lua, o do centro de Plutão? Já sei: o dos anéis de Saturno!

Tirando uma capa que lhe cobria o rosto, o ser se revelou um homem, igualzinho a Magô, com braços, pernas, cabeça e dois olhos que exprimiam uma dúvida sem fim.

- Você é humano?

- Lógico, minha pequena. Como você chegou aqui?

- Não sei, acho que o meu desejo se concretizou, sempre fui louca para mudar de plano. Hoje eu consegui.

O homem piscava com uma serenidade ímpar e, escutando tudo o que Magô dizia, sussurrou:

- Não foi dessa vez.

- Que você disse, indagou Magô.

- Nada não, meu bem.

Passearam por caminhos tortuosos. Volta e meia se encolhiam e ficavam com a impressão de terem os pés molhados. Ela viu uma espécie de rato e nem teve medo.

- Coisas do outro mundo não fazem mal a ninguém, disse como se expressasse a mais profunda certeza do mundo. Desse ou do outro.

Caminharam até um espaço onde um filete de luz ofuscava os olhos dos transeuntes extra-intra-mundanos. Subiram uma escada e quando a emoção ia ganhando força alguém girou uma tampa e gritou que o trabalho havia acabado. O homem subiu rapidamente as escadas e Magô então descobriu que se tratava de um bueiro. Saiu cabisbaixa com a descoberta e quando voltou para casa já era escuro. Na esquina do seu quarteirão viu uma luz que passava de um ponto a outro no céu e teve suas esperanças reavivadas. Mal sabia ela que era a lanterna do seu pai que quase morreu de preocupação e, apavorado com a situação, saiu a sua procura.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Banana light para macacas taradas

É de novo que se torce o pepino, no caso de Euzébia teria que ser a banana, mas não torceram. Deram-na amassada, depois com aveia, inteira, doce, bala e admiração pela fruta. Alba paradisiacas musa se pudesse tatuava na pele a veneração, porque na alma a tinta não desbotava por incrível que pareça, ela não enjoava. Diziam-lhe: menina você morrer de tanto comer banana! Entretanto ela não se importava. Toda mulher adora rosas, ela da caturra a nanica não rejeita. Episódios como o furto de um cacho, de uma penca eram comuns. Para ela não fazia mal, mas o seu corpo começou a sentir os efeitos da ingestão exagerada. Engordou de modo exorbitante. O médico lhe deu a sentença: ou para de comer ou morre. Ela pronta para se jogar da torre da igreja ouve gritos que pedem, suplicam para ela não se jogar. Ouve que a mãe esta lá embaixo, os amigos todos imbuídos na causa, megafone em punho, o prefeito, os moradores já acompanhavam pelo rádio a história da moça tarada pro lado de banana, eles já sabiam detalhes da sua vida, entrevistas, enfim, a cidade parou. Eis que sua vista turva de tanto chorar enxerga um cartaz que em letras garrafais dá-lhe a esperança para levar a vida até o fim. Nele lê-se: Não pule, menina, já inventaram bananas lights para macacas taradas!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Meus espinhos


Somos rosas
Com pétalas desbotadas
Folhas amarelas
Espinhos dolorosos
Pólen pouco atrativo
Uma rosa excluída
Da beleza da primavera
O vento não nos convida a dançar
As borboletas são repelidas
O sol não nos trás vida
A lua nos exclui do espetáculo noturno
Os enamorados não nos olham
Os defuntos vislumbram em nós enfeite
Tudo em branco e preto
Felicidade é um retrato na parede
Os meus espinhos são uma constante na minha pele
Não tenho seiva
Não sobram em mim senão sombras
A paisagem pede:
- Que morra, Sempre-viva!

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Desde a tenra idade

Pequena consumista


Fui ao Shopping outro dia e numa livraria entre materiais escolares e livros de temática superficial e perecível vi uma mãe em seu momento filosófico ensinando a sua pequena (devia ter quatro anos, no máximo) que não podemos comprar tudo, e pelo olhar da menininha ela queria que embrulhassem o mundo para presente. A mãe ajoelhou-se e da altura da pequena consumista disse: “Meu bem, tem lojas em que o dinheiro compra muito e tem lojas em que o dinheiro não compra quase nada, a mamãe não pode gastar por que senão não vai dar pra pagar”, faltou somente uma rima e dizer: VAMOS ECONOMIZAR! A pequena olhou para mim com uns olhinhos de dúvida que perguntavam é isso mesmo? Eu, rapidamente, balancei a cabeça afirmativamente e ela devolveu um objeto inútil para sua idade: uma calculadora científica!


Não deu, espreme que dá!

A escrita fascina as crianças, elas com aqueles traços engarranchados e sem muita coordenação escreveriam um livro se fossem incentivadas, mas o problema é que os lugares onde escrevem geralmente são impróprios para elas deixarem os seus hieróglifos: paredes, livros, lençóis, a própria perna, o braço dos outros etc. A prima de um amigo meu estava em seu momento de literata, escrevia o nome RAPHAEL, mas quando, já no final do nome, ela constatou que não caberia o L, ela hesitou e em poucos minutos a solução: virou a perna da letra, sem dó nem piedade da letrinha entortou a coitada e tirou disso uma constatação, a de que sempre podemos dar um jeito, mesmo que torto.


Deus me livre quem dera!

Não presenciei a cena, mas a minha eficiente informante contou-me tudo, e com riqueza de detalhes. A sobrinha de uma amiga minha era fascinada com a máquina de lavar. Quando a mãe transferia as roupas sujas para a máquina, a menina olhava aquele eixo girando e ficava embasbacada. Certo dia ela tomou coragem e disparou: ”Mamãe, quando a senhora morrer, Deus me livre quem dera, dá a máquina pra mim?”. Vai ser uma excelente dona-de-casa!

Mãos


As mãos que me encantam
Tem muitos detalhes.
O desenho das veias,
rio que serpenteia até chegar no mar: seu coração.
A curvatura dos dedos, lindos.
Os poros que lhe deixam escapar a alma.
A graça que um anel lhe confere não pode ser traduzida.
A palma tenra,
As digitais, as linhas, as unhas.
O elo do amar, o selo do amor.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Galopera


Pulmões de aço
Galoooopeeeeeeeeeraaaa
Ganha a amada amante no grito
Seu amor é perene
Sua recusa ao efêmero é certa:
Nunca mais te esquecerei...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sábado


Olho entre a roseira: o Sol
Um arco-íris convidativo
Chama-me
Pássaros melodiosos
de penas aquareladas
me traz frutos
e um tom prosaico no bico
uma brisa fugaz traz florzinhas
e lembranças.
Lembranças constantes
E o crepúsculo preenche lacunas.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Amar o perdido



Amar o perdido deixa confundido este coração... Adorava Drummond e “Memória” era o seu preferido poema. Não era de ferro como o itabirano, mas nem de longe lembrava a frágil menina dos tenros anos.

Era artista plástica. Escultora. Fazia, com uma freqüência intrigante, bailarinas. Rodopiando, bailando, voando, com movimentos perfeitos. Sempre de coque, pernas finas e vestidos floridos. Era realizada na profissão, com mostras em exposições que lhe rendiam louros.

Era casada e amava demais o marido. Deveras amava. Mal sabia que tudo em excesso é pernicioso. Ouvira maquinalmente, no casamento, as sábias palavras de Padre Antero, que entravam e saiam de seus ouvidos com velocidade ímpar:

- Meus filhos, não pequem pelo excesso – dizia o sacerdote e prosseguindo – até água benta, em excesso, afoga.

Ela, em total devaneio, criava suas esculturas, só lhe faltava material. Tinha um ciúme possessivo, sufocante. Ele não suportava mais. Era como um sapato apertado, um local fechado. Não se fazia esquecer, estava presente dia a dia. Chegou a segui-lo. Cheirava suas roupas e quando alguém ligava (mulher ou homem) falava que havia saído há pouco.

- Quem era? – ele perguntou

- Telemarketing – dizia ela com a naturalidade de um monge tibetano.

E marcando lugar, o ciúme foi crescendo, crescendo e como uma força estranha afastou os dois, empurrando um para fora da relação.

- Eu amava quem você era – disse o marido depois de uma briga acalorada.

- Você nunca me amou – ela revoltando-se.

- Você é que nunca me amou, eu sempre fui um joguete em suas mãos, uma bailarina...

Ela deixou escorrer um fio de lágrima que lhe cortou a face.

- Não me comovo – ele já saindo – tentei, mas não dá! Não dá!

- Renato, Renatoooo! – se jogando no chão, gritou em vão.


Pegando a mala e girando suavemente a maçaneta ele atira contra os sentimentos dela (inexistentes em sua opinião):

- Adeus, Marcela e um feliz ano novo. – Ele saiu na chuva e fez sinal para um táxi. Nem olhou para trás.

Ah... Esqueci de contar que o desenlace ocorreu dia 30 de dezembro. Chovia... Ela desceu ao ateliê, concluiu uma bailarina suspensa por um bailarino. Escreveu um bilhete. Colocou-o embaixo da escultura. Com muita serenidade procurou na gaveta, entre calcinhas, o que queria. Abraçada a uma foto do casamento fez dois furos, e caindo, já delirando, gritou o nome do amado.

No bilhete lia-se: “Amar o perdido deixa confundido este coração”.