domingo, 31 de outubro de 2010

Les amours imaginaires

para Hilda Hilst

O amor dele existe no espaço. A simples demonstração de afeto o faz secretar nácar num sorriso, num aceno ou numa gentileza. Esse sentimento flutuante vai e vem na paciência dos dias, reluzindo no bojo de uma garrafa. O tempo passa e ele não esquece.

A cada noite o pensamento escorre pelo seu corpo como uma hemorragia: amanhã sim, ele virá.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Poemas breves

Refletidas na água
as árvores
dançam como odaliscas

***

O Sol no espelho
é laranja
ou vermelho?

***

Grande diapasão
afina o vento
do sim e do não

***

No meio da melodia
do meio-dia
o universo ria

***

Na mata fechada
a noite faz fotossíntese
no escuro

***

Minha loucura é
adestrada
pela esperança de cura

***

Chuva na piscina
A gota cai
e se alucina

sábado, 25 de setembro de 2010

Por mais que eu tente são só palavras

Abri minha latinha de biscoitos importados (tia Cecília trouxe da Europa pra mim) e tirei de lá de dentro uns pedaços de pão. Esfarelei-os ainda mais e joguei sobre a toalha sobre a grama. Não demorou muito e eles vieram pulando, fazendo algazarra. Entre chilreios e bicadas, eu peguei e colori os mais pálidos, enchi de vida e significado aqueles passarinhos mais foscos. O banquete era espetacular, eu jogava as migalhas e gritava ê, ê! Uma ventania de asas e pura felicidade inundava aquele pequeno quadro, e, apagado como uma fotografia velha, o mundo me olhava.

Com uma rapidez mágica eu tampei a lata, limpei o colo, peguei um fio e, um a um, fui amarrando-os. Pelas patinhas eles iam se enfileirando na linha. Quando vi que estava assaz poético, eu parei. Eles, inertes a dor da prisão, saíram voando. Eu me levantei e sacudi a toalha. De longe a cena era bonita, de perto não passava de um final feliz.

Um dia na vida de um poeta.

sábado, 18 de setembro de 2010

Garoa e neblina

O palco escuro esconde uma menina sentada ao piano, prestes a começar sua apresentação. Ela está nervosa, treme um pouco, mas com uma mão segura a outra. Respira fundo e solta aos pouquinhos. A ansiedade não passa. Ela vê os pais dos seus colegas chegarem. Os seus pais já estão na primeira fila. A câmera já está posicionada nas mãos de sua mãe. A professora faz um sinal de que em três toques ela começará. Ela faz um leve alongamento e estica os longos dedos. Passa a mão pela franja, ajeita o cabelo atrás da orelha. Aperta o laço do vestido de organza azul. Posiciona-se melhor na banqueta. Faz um plano mental de sua execução e de seus próximos passos após a apresentação. Uma trilha sonora começa em sua cabeça. No último toque ela segue o seu fluxo interior. As escalas saem dela e não do instrumento. No final da terceira parte, uma nota se distorce, a outra sai errada. Ela não consegue segurar as águas novas que fervem em seus olhos. O teclado é cúmplice do choro. O final é aplaudido, mas para ela não faz sentido. Ela se levanta, faz reverência a platéia. Sai do palco antes que as palmas cessem. Corre pela coxia até um canto isolado. O perigo de ser só alegria passou. Agora ela já é uma moça em que melancolia garoa de quando em vez.

sábado, 11 de setembro de 2010

Ainda há auroras, apesar de tudo.

Meus dias são amorfos. O céu no teto acima da minha cama não me diz nada, ele existe, sem estrelas e com magnética vontade. O dia nasce bonito, terno. A tarde, quando intensa e luminosa, passa pelo meu rosto. A rotina me dá uma tristeza que espero passar. Eu estou bem, mas não consigo descrever esse estado intermediário entre o inteiro e o nada. Sou um círculo que se completa no vazio. Com focinho de lobo solitário sinto que alguém pode vir. Tenho medo. Bebo água e passa. Não pense que uma pessoa com tanta força interior pode se conservar sendo ela mesma. O meu novo caráter ou a falta dele me fez perder todo o interesse pelas coisas. A falta de dignidade dos seres é considerável. As exceções não me são palpáveis.

Tenho tido maus momentos, mas reajo. Porque eu faço isso? A minha revolta renascentista não muda um átimo de segundo na volta da Terra. Ah, comi pão com manteiga pela manhã.

A meninas correm na praça. A meninas de maiô. As meninas de saias curtas. As meninas tristes. As meninas. Os meninos correm na praça. Os meninos de uniforme. Os meninos nunca tristes. Os meninos. A dinâmica vital e normal. Essa é a regra.

O sol batendo nas frutas expostas na feira realça-lhes a cor. A melancia parece estar dulcíssima. Não gosto de melancia. Não tem caju. Queria um.

Fiz um poema que eu não gostei, mas me disseram ser bom:
'[...] a terceira palavra
canta no escuro
um canto de grilo
na noite ensolarada.'

Vejo crianças pedindo ajuda e penso em sentar-me ao lado delas e empunhar minha placa. Tanta pobreza e miséria. Miséria de alma.

Olhei o horóscopo. Não vou sair hoje.

Finjo muito. Vou parar com isso.

É pena o dia estar chovendo. Fora isso, vai se vivendo.

sábado, 4 de setembro de 2010

Dora




Adeus, Dora!
Olhou-me em cheiro
Aroma pretérito
Amor mais-que-perfeito

Jaz em mim
o
Jasmim

Ou não

Sabe aquela história de que em time que está ganhando não se mexe? O Ladston não sabe. Tudo pode estar correndo muito bem, basta pedirem a sua opinião e a coisa desanda. Essa não é sua intenção, ele não é pessimista, muito pelo contrário, tem todos os livros do Augusto Cury e adora citá-lo quando tem que justificar suas respostas: "use suas falhas para esculpir a serenidade" ele diz com os olhos semicerrados. Todos dizem que ele é indeciso (ele é indeciso!), mas quando ouve isso ele dispara suas convicções com um sorriso escancarado, dando entonação a sua voz que lembra um pouco a do Arnaldo Antunes: aborto, casamento guei, ditadores, relações diplomáticas com o Irã, tudo isso passa pelo seu discurso, mas o que ele fala no início já é outra coisa no final. No período de eleição, Ladston sente um arrebatador sentimento no seu coração. Muda o seu escolhido várias vezes por dia. Acorda como um direitista e à noite é da esquerda-liberal. Na última eleição, no instante seguinte em que apertou a tecla verde para confirmar, se arrependeu e soltou um gutural sussuro "Ah, não!" Nessa, ele já decidiu: não vai votar. Mas isso também pode mudar.



sábado, 21 de agosto de 2010

Teresinha

Teresinha é uma moça que gosta de treinar seu francês vendo os filmes da 'Nouvelle Vague.' Quando vai a um café pede sem açúcar e toma sozinha. Usa xadrez em suas blusinhas com pregas e suas saias retrô. Quando vai subir no ônibus deixa todo mundo passar na sua frente, porque considera deselegante ser a primeira. Dizem a ela que isso é desnecessário, mas ela mantém isso por princípio. Quando está no cinema e aparece uma cena de beijo, involuntariamente ela solta um 'ai, ai' e fica nisso, um breve suspiro. Só sai da sala de exibição depois que os créditos finais já desapareceram há alguns minutos. Teresinha gosta de certificar-se que não vai perder uma cena que seria exclusiva para ela. Quando vê alguém mais forte maltratando um mais fraco ela sai de si. Cresce num personagem que é oposto a sua timidez: 'vai brigar com alguém do seu tamanho, ô covarde!' Um professor de filosofia falou que ela está no contra-fluxo da humanidade. Não há pares para essa mocinha nesse mundo, pensou ele. Ela separa moedinhas para os pedintes que já a chamam pelo nome. Outro dia ela foi atropelado por um fusca, mas mesmo mancando recusou ajuda. Ficou até com pena do motorista bigodudo que escutava no rádio do carro 'você é luz, é raio, estrela e luar...' Semana passada ela tirou o gesso. Naquela placa branca já não cabiam mais corações.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um encontro com Shakespeare

1.
Estava encostada numa pilastra olhando para o chão. Esperava para entrar no encontro literário. Quando levantei o olhar um homem me escaneava. Pescorreu cada centímetro da minha saia floreada. Prestava atenção no livro que eu segurava, chegou até a inclinar a cabeça para ler o título. Eu tentei disfarçar, mas ele era obstinado na sua investigação. Estava sem graça, entretanto comecei a olhar também. O meu olhar era desafiador, como se dissesse 'o que você perdeu aqui?' Ele ignorava que eu estava presente, fazia isso com uma naturalidade assustadora. Em um ou dois minutos que parei de olhar ele começou a se aproximar. Eu repetia 'passa reto, passa reto, passa reto' como um mantra.

2.
... passa reto, passa reto... 'Qual seu nome?' Sua voz decidida vibrou no ar. Virei a cabeça e instintivamente dei um passo para trás. Disse o nome. 'Qual sua profissão?' Disse. 'Está esperando muito tempo?' Não, acho que o mesmo tanto que você. Nos vemos lá dentro. Fui dando as costas e entrando. Ele segurou meu braço com força e disse que eu era reencarnação da Julieta. Como assim? Que Julieta? E daí se sou! Fiz força e me desvencilhei.

3.
Ele me segurou de novo, mas dessa vez foi mais incisivo. 'Você é a Julieta e eu sou o Romeu'. Eu ri um riso frouxo que ele não interpretou como um deboche. Falou que eu reagiria assim mesmo. Essa era nossa sina através das idades. A incredulidade no amor. Ele me disse que essa era a décima segunda vez em que nos víamos e nada fazíamos. A última vez foi numa barca no rio Amazonas. Eu gritei: como assim se eu nunca fui ao Amazonas? Ele disse que não havia ido nessa vida. Ah, entendi. Isso é pegadinha de televisão? Falei mergulhando nos seus olhos: desculpe-me seu Romeu,mas eu tenho que entrar. Qualquer dia lemos Shakespeare juntos e aí eu te explico que eu não sou a tal Julieta que o senhor está procurando. Com licença.

4.
Ele me puxou de novo e decididamente dobrou-me e tocou-me os lábios com a boca. Eu não sei o porquê até hoje, mas eu correspondi àquele beijo.

sábado, 7 de agosto de 2010

A vida não basta

Retorço arames para escrever
Quanto mais prática, mais grosso fica o arame

Eu, com mãos de titã, escolho um arame
Com força, arranco-o de onde repousava sem sentido algum

(Eles são imoldáveis, muitas das vezes)
Entretanto, com esmero de ourives, moldo-o

Aprisiono-o em uma escultura móbile
um
a
um
eles vão ganhando sentido

O brilho deixa minha vista embaçada
No fim, não sei o que fiz

Mas já está feito.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não deu para filmar

Vai, meu irmão,
pula de cabeça
Isso vai te fazer feliz
(por um segundo)
depois você esquece
que existiu felicidade
nesse mundo

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Diga a ela que eu sou você

para Caetano Veloso

Escrevo esse poema
Ou seria letra de música?
Em homenagem ao músico que declama
ou reclama minha atenção
cantando fora do tom ou com o Tom

De que me vale a tarde ser linda
se o sorvete já está no fim
e eu não ganhei o beijo da moça?
A brisa bate sem medo e ela me diz
com timidez ou seria porque não sabe mentir?
já está tarde...

Só um som me renova:
sua voz em bossa-nova
no meu peito em harmonia com o samba
digo adeus e fico só, sem mim.

Lanço no papel um verso disperso
Uma lágrima lírica
Um, dois, três
sinto cheiro de flores pisadas
de amor machucado

Um poeta, um amigo
meu amor ao mar
Quem clama é o Caetano
no corpo de outro menino

De Santo Amaro ao Rio de Janeiro
Quero o corpo dessa moça
inteiro
De fevereiro a fevereiro

Marque um encontro com ela
diga que vai lhe dizer verdades
"Vocês não entendem nada"
Peça ao garçon cajuína
Se não tiver peça café
Diga que um amor assim a gente não recusa

Fale que sou seu amigo
que meu amor é puro e verdadeiro
Se começar a chover
entregue a ela esse bilhete
e diga para selá-lo com um beijo

No dia de amanhã
vou te escutar
no silêncio de uma cidade do interior
na minha radiola miocárdica

Um homem do coração de maçã
No mundo de outros sem dentes

domingo, 1 de agosto de 2010

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Silhuetas de um suburbano amor

Ele sorveu a sopa com modos rudes e fez uma pausa pra encher de novo a colher. No rádio, baixinho, Caetano pedia para ficar Odara. A mulher parou no meio da sala.

– Gostou da sopa, meu bem?

Ele continuou mecanicamente o que fazia. Moveu um ou dois músculos do rosto.

– Tá, tá bom, mas sopa a gente não pode conversar enquanto toma, senão esfria.

Ela arqueou as sobrancelhas e passeou vagamente o olhar pela sala pobre e pouco decorada. Desligou o rádio. Ligou a TV e deteve seu olhar na Ana Maria Braga que fazendo a reflexão do dia disse em tom de conselho para as amigas donas-de-casa: “não despreze seus sentimentos. Podem ser a única coisa que você pode possuir”. Ela achou a frase impactante. Era como se um raio dentro dela mostrasse que ela podia ser feliz.

– E agora, porque você está me olhando com essa cara? – Ele disse com impaciência.

– Estou observando que você está ficando mais bonito, mais homem, sabe? Passou a mão pelo cabelo como se fosse desembaraçá-lo. E sentou-se junto dele passando a mão pelo seu peito.

– Mas que história é essa? Tá parecendo uma rameira. Que isso? O cara trabalha a noite toda e quando chega em casa a mulher ainda fica fazendo tipo. Vai procurar uma panela. Essa é boa! – Falou empurrando a mulher que fez dos olhos dois riscos pretos. Apertou as pálpebras para segurar o choro. – Vai a feira, vai pro raio que a parta, mas some, deixa eu dormir em paz.

Ela saiu para comprar as coisas que faria para o almoço. No mesmo programa a apresentadora radiante ensinou a fazer risoto de gorgonzola e filé. Antes passou na padaria para garantir o lanche da tarde. O padeiro de modos galantes perguntou se ela tinha mudado a cor dos cabelos.

– Mudei sim, ficou bom? Meu marido nem reparou.

– Como pode, uma mulher bonita dessas! Depois não sabe porque perde para concorrência. – Vendo que tinha falado demais ficou pejado e, tentando consertar o erro, ofereceu um sonho. – está quentinho, eu mesmo que fiz.

Ela aceitou o sonho e o convite dele para tomar um sorvete em frente à padaria. O Sol não tinha segredos e inundava a ruazinha. A brisa batia leve, ao longe um redemoinho se formava. Os relógios da torre informavam as horas. Naquele dia não teve almoço.

Nem nos que se seguiram.

A arte em si

Quando eu falo de poesia, não é apenas da poesia que nem sempre encontramos no poema. Falo do fenômeno poético de natureza epifânica, reveladora, que confere a uma obra de arte o estatuto de obra de arte, pode ser escultura, dança, cinema, e literatura. Toda arte se justifica pela poesia que contém. Se não tem poesia não é obra de arte. A obra verdadeira é sempre nova, não cansa, porque traz em si mesma algo que não lhe pertence, nem ao seu autor. Vem por meio natural, por meio da beleza – não de boniteza, mas sim da forma – que é natural.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Um souvenir que não sorri

Há pessoas que não possuem o dom da felicidade. Parecem estar perenemente sofrendo de uma dor que não passa, de um sofrimento da alma que inunda quem a eles dirige um olhar. Não fazem questão de externar o sentimento, entretanto ele brota como samambaia no muro ou água na fonte. Alguns caminham de lado, suportando o peso da dor como se fossem adereços que não podem dispensar.

A foto está na minha frente, em cima de um aparador que num canto guarda as outras épocas dessa casa. O rosto de um homem que vejo é desbotado pelo tempo, mas mesmo se a fotografia tivesse sido revelada na hora, ela ainda guardaria essa tristeza. Seu rosto é perfeito: o nariz, o queixo, os olhos que conversam (e te perguntam como podes ser tão feliz), a boca que esboça um sorriso. É lindo, mas, repito, é triste.

Não sei bem o motivo para a tristeza, mas suponho que não seja por causa do dia que prenunciava chuva ou um desenlace amoroso. Creio que não saberia viver de outra forma. Ele é hipnotizante, intenso. Minha tia disse que ele é primo do meu avô. Talvez seja, reconheço o nariz da família. Pego o porta retrato que repousa em meio a sorrisos da família grande sentada na escada, dos outros primos do meu avô, moços ainda, montados em cavalos, com aparência atlética e jovial, das tias que seguram seus bebês, do tio renegado (e até ele sorri). Meu parente distante, agora colado ao meu peito me faz sentir que a felicidade pode ser um peso. Eu, contagiado, choro.

Minha avó entrou na sala e me disse agora que ele morreu faz tempo. Ela ainda era moça, mas as histórias a respeito dele rondam a família desde então. “Contam que num dia nublado de novembro ele sentou-se debaixo de uma figueira e esperou que a tarde descesse. A noite veio e ele, deitado sobre a terra, foi encontrado morto. Curiosamente rindo, talvez pela primeira vez.” Durante um átimo de segundo lamentei por não tê-lo conhecido.

domingo, 11 de julho de 2010

Dicionários não dizem tudo

Umedeceu a ponta do dedo. Passeou o olhar pela página com uma calma tibetana. Como um pássaro que entra pela janela sem motivo, uma palavra perturbou a sua paz. Na sua face surgiu uma interrogação, um levantar de sobrancelha, um esgar de incompreensão. A leitura que até então fluía é interrompida. Ele estacou naquela palavra que não lhe dizia nada, mas, no momento, era a razão de sua vida. Tinha que decifrar aquela Esfinge que no deserto de letrinhas miúdas o ameaçava.

Tentou ir pelo contexto, pelas experiências passadas, pela numerologia, por dedução. Nada. Nada lhe dava coragem para seguir adiante. “Pode ser isso, ou não”. Repetia quase delirante. A palavra – imóvel – era como dois olhos de gato na escuridão. Perseguia-o, mas não se revelava. Arrependeu-se de não ter comprado um dicionário para lançar mão em situações parecidas. “Amanhã eu compro”. Passou uma marca texto fosforescente na palavra. Ela, marcada, não iria fugir.

O primeiro sinal da noite anterior foi ao acordar. Ficou parado, olhando para sua mulher por um quarto de hora. Saiu da cama felinamente. Sem fazer o mínimo ruído tomou banho, se trocou com dificuldade. Em pé, comeu pão sem manteiga e tomou café num pires, como um gato.

Na rua, ficou perdido a caminho do trabalho. Fazia anos que metodicamente seguia pelas mesmas ruas. Os meninos de rua que ele encontrava pelo caminho recebiam todos os dias moedinhas de um real que ele deixava no porta-luvas para esse fim. Naquele dia, ele passou reto. Furou o sinal vermelho. Chegou ofegante na redação. Subiu os andares pela escada, para evitar encontros. Não podia mais ignorar tais fatos. Algo muito estranho estava acontecendo. Ligou para um médico amigo. “Estou me esquecendo das palavras”, ele disse baixinho para que os colegas não o ouvissem. Posso ir aí agora? O médico assentiu. Ele saiu tropeçando nas pessoas, em total desalinho. A gravata frouxa lhe emprestava ares de clown.

Doutor, eu sei que isso parece loucura, mas é verdade. Só consegui falar com você porque fiquei ensaiando antes. Insistiu e tirou do bolso da camisa o rascunho da conversa. “Preencha essa ficha enquanto eu visto a minha luva”, disse o médico resmungando uma queixa inaudível. Doutor, eu não sei mais meu nome, vou conferir na carteira de identidade. Falou e sua voz parecia sair descompassada, ora feminina ora grave. O médico fez todos os procedimentos que estavam ao seu alcance, examinou-lhe o tórax, as costas, a boca. Não havia nada de anormal. “Isso deve ser estresse, sua vida anda muito agitada”. Saiu do consultório com um ansiolítico.

Na volta para casa não hesitou, deixou o carro no estacionamento do consultório e pegou um táxi. “Pra onde vamos?”, perguntou o motorista com um palito na boca e jeito de quem se faz amigo. Pra minha casa. O taxista mirou o retrovisor e pediu o endereço. Ele passou o celular e pediu que ele ligasse para sua casa, sua mulher iria lhe guiar. A mulher pagou a corrida, levou-o para dentro e na cama ele esperou pelo remédio. Adormeceu.

Quando acordou emitiu uns grunhidos incognoscíveis. Seus olhos vacilavam no foco. Não sabia onde estava e muito menos quem era aquela mulher jovem e bonita, mas com um quê de tristeza no olhar que lhe desnudava. Ele estava nu, embora vestido. Sentia vergonha, como se sua alma fosse transparente e todos pudessem ver seus pensamentos escorrendo feito mel pelo seu corpo. Talvez escorressem mesmo, porque sua mulher entendeu o que estava fazendo pulsar as fibras mais íntimas de seu coração. Sumiu de sua vista e quando voltou trazia um pesado livro. Lembrou-se de sua professora do jardim: “o mundo está todo dentro do dicionário”. A lembrança, em meio à bruma do passado o impeliu a abrir o coletivo de palavras. De súbito foi retirado do seu estado de coma. O dedo parado em cima da palavra trouxe de novo a paz. Seu léxico se atualizou na sua mente. Ele voltou à normalidade e com um abraço de anjo acolhedor disse no ouvido da sua amada a palavra que encerrava todas.

A mais bela verdade do mundo.

sábado, 10 de julho de 2010

A emoção não deixava soar claro

A interpretação é brilhante, muito real. BRAVO! Com uma cimitarra, ele encerra fatidicamente a história do seu personagem. Oh! A plateia grita! O corpo, no centro do palco, permanece iluminado enquanto as palmas esquentam aquela noite fria.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Espelho

Vejo-me tão belo.
Invertido e equidistante
Da realidade.
A minha face – tela surreal –
Espia-me de lado
Quando me penteio.
Essa parte é minha,
Reconheço-me e esperneio.
Não sei por que ajo assim
Nesse lago profundo eu não sou feio.

Contrasto esse rosto que dizem ser meu,
Dou um salto rumo ao lago,
Tudo branco
Logo depois, vermelho.
Agora sim não me reconheço.
Questão de tempo.
Tudo tem um recomeço.

sábado, 12 de junho de 2010

Fora de foco

Passeou o olhar pela sala até se deter no pequeno anjo de cristal. Estendeu a mão.

Tão frágil e tão humano. Parece um homem, porque os homens são feitos até de cristal, mas são frágeis como anjos que temem descer do céu e vagar pela Terra. Situação parecida quando eu era criança e não queria abandonar meu lugar no esconde-esconde, mesmo sabendo que se esqueceriam de mim. Você brincava de esconde-esconde, Fernanda?

Ela molhou delicadamente o pincel na tinta vermelha. Limpou o excesso. Deu dois toques minuciosos na tela. Pintava uma paisagem morta.

O que disse?

Ele não respondeu. Ficou olhando para tela que ela estava construindo.

– Como é bonito... Posso sentir?

Ela limpou o pincel na água que lentamente foi se tingindo de vermelho.

– Não está pronto ainda – num gesto atarantado perguntou. – Como assim sentir?

– Assim como eu sinto as pessoas sem tocá-las. Elas só têm que permitir, porque eu não consigo ser sensível com quem não deixa. – Baixou a cabeça como se quisesse chorar.

– Espera eu terminar e aí você sente... – Fez um meneio de cabeça.

Ela pintava e de soslaio ia acompanhando seus movimentos.

– Posso fotografar?

– Pode – respondeu para se ver livre das perguntas.

Ele se levantou e foi com as mãos na boca procurar a câmera. Esbarrou na mesa de centro e desviou o anjo da sua posição inicial. O telefone tocou e num recorte da conversa ela reclamou da doença de Augusto.

– Não suporto mais. A cada dia a doença do Augusto atinge graus mais elevados. Teve um dia em que ele repetiu sem parar Fernanda, Fernanda, Fernanda, Fernanda. Eu estou enlouquecendo junto dele.

Augusto voltou para sala e esbarrou novamente na mesa. Dessa vez o anjo tombou no chão e se partiu em mil caquinhos. Ela murmurou um “ah, não!”. Ele, como em um ritual, tirou o sapato e começou a pisar os cacos.

– O que é isso? Para já! Para, para!

– Eu mereço. É minha punição por ter feito isso.

O pé minando sangue foi tingindo o tapete. Ela conseguiu afastá-lo por um instante.

– Eu vou fazer você pintar paisagens vivas de novo! Eu não vou deixar você morrer. Eu vou te salvar. – ele disse convulso.

Ela sem entender o que despertou a crise tentou acalmá-lo. Em vão. Augusto, num salto de felino, subiu na mesa e tomou impulso. Saltou pela janela do quinto andar.

Ela limpou a tela e saiu desesperada.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Cleo, Clara.

- Eu tenho que subir mesmo, Cleo? Irrompeu o silêncio da sala a voz suave de Clara.

- Tem! E rápido. Ah, cuidado com o terceiro degrau, a madeira está solta e você pode cair.

Se apoiando no corrimão carcomido, as mulheres foram subindo. Clara tirou seu sapato de salto estilete e foi descalça. A madeira rangia. No final da escadaria uma porta trancada.

- Clara, me dá sua presilha!

- Não vai estragar hein?

Cleo rodou, rodou na fechadura. Pouco depois a porta velha abria deixando a presença dos cupins no chão.

- Está tudo podre.

- Você não vai conseguir achar nada nesse escuro – Clara falou se escorando na parede com papel antigo que recendia a bolor.

- Se você me ajudar, fica mais fácil... – Cleo disse se agachando e olhando debaixo da cama.

Puxou uma caixa de madeira. Soprou. Tossiu. Tossiu.

Abriu e mal conteve seu susto ao encontrar um punhado de fotos velhas.

- Vamos embora?

- Vamos.

Conversaram por um tempo. Pareciam discutir.

Suas vozes foram ficando mais fracas. O som oco de um corpo caindo no chão acordou um cachorro na vizinhança que latiu renitente.

Na penumbra da janela de onde outrora se viam dois perfis, uma silhueta recortada na luz somiu no escuro.

A noite prosseguiu em silêncio.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Tom Zé

Tom Zé subiu ao palco com um pouco de atraso, nada muito grande. Foi até animador para receber o mais inventivo cantor, compositor e arranjador do Brasil. Ele é anunciado, sobe ao palco, mas volta anunciado por ele mesmo. O público, fingindo não o ter visto, aplaude calorosamente. De megafone em punho ele vai chamando os músicos da sua banda que vão tomando seus lugares. Ao final faz uma brincadeira dizendo que aquela era banda para tocar no FITO [Festival Internacional de Objetos]. Começa cantando Fliperama e depois segue com grandes sucessos como Ogodô, João nos tribunais, Síncope Jãobim, tudo com muita criatividade, sua marca registrada. Finaliza fazendo sua performace com os esmeris, deixando a plateia boquiaberta com a sonoridade dos agogôs sendo "polidos". Ao término da apresentação ele volta logo em seguida pra fazer o bis e justifica: "Eu sei como funciona esses protocolos, vamos fazer logo que tem gente que quer dormir cedo".

*Tom Zé se apresentou com sua Banda dia 08 de maio na Serraria Souza Pinto dentro do Festival Internacional de Objetos que passou por Belo Horizonte.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Em definitivo

O melhor do mundo
seria eu
seria sua metade Calcanhotto
mas você não é inteiro
e eu não sou o que você pensa. 

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enciclopédias sempre pesam na bagagem

Agora era tarde para voltar atrás. Estava muito determinada e uma reviravolta nas suas determinações representaria uma frustração por toda vida. Com uma calma de quem está fazendo a coisa certa ela abre uma pasta de couro marrom e no fundo falso coloca uma faca de aço frio e iridescente. Ao encostar-se a uma moeda, faz o barulho do encontro entre iguais. Era sete da manhã e o calor já era insuportável. “País tropical com calor senegalês”, resmungou em meio de um bocejo. Tomou café da manhã em pé e enquanto isso seu gato – Trevisan – enrolava o rabo na sua perna. Ele era sua única companhia em tempos tão difíceis.

Ela ganha a rua e, mesmo atrasada para pegar a lotação, não corre. Prendera o cabelo porque já estava transpirando. O Sol com seus raios convidativos assediava as arvorezinhas das ruas que ela via pela janela. A manhã era muito agradável e só não seria melhor porque a temperatura era alta para o começo do dia. Quando foi descer, a barra do vestido vinho prendeu na porta e, sem paciência para tirar, deu um puxão que rasgou até a altura dos joelhos. “Melhor, hoje está muito quente. Nada me prende” - falou rindo.

No prédio cumprimentou o porteiro que falou sem parar:

- Bom dia!

- Bom dia!

- Calor hoje, não?

- É.

- O patrão já subiu e perguntou pela senhora.

- É mesmo?

- E ele tá com uma cara daquelas...

- Hoje ele vai ficar calmo... Tem carta pra mim?

- Não, tem não – enquanto falava revirava uma caixinha de correspondências – se chegar eu mando lá em cima.

- Está certo então.

- Bom trabalho.

Ao chamar o elevador vê uma moça que era estagiária, e lembra de como começou na empresa. “Santo Deus, eu era uma menina...” Vai sozinha no elevador até o quinto andar, no sexto um rapaz sem uniforme entra falando ao celular:

- Ela também foi assediada? Não acredito! Esse seu Varella dá de cima de todas as moças dessa repartição! Promete vida boa pra todas, né?... Só não dá bola pra mim! – deu uma longa gargalhada e parou no oitavo andar. No nono ela retoca a maquiagem e sente o cabo da faca ao guardar o estojo. Sai, enfim, no décimo terceiro.

- Bom dia – fala jogando a bolsa em cima da mesa.

A sala estava cheia, mas ninguém falou nada. Uma voz tímida e com ares de reprovação:

- Como pode voltar aqui de novo?

Ela começa a trabalhar, mas não consegue se concentrar. Passa por trás dela seu patrão, o doutor Varella. No seu ouvido ele fala para ela ir à sala dele.

Quando ela entra na sala, ele vira um porta retrato da sua mulher com seus filhos. Ela, parada na porta, pergunta o que houve.

Ele se levanta e começa a caminhar na sua direção.

- Eu só quero seu bem... Você acha que... Arrh...

A fala é entrecortada por um grito grave e com um esgar ele cai desfalecido. Com a mão no peito, em cima do coração, ele fixa o olhar nela. Ela passa por ele e desvira o retrato. Abaixa e fecha suas pálpebras.

No meio de um palavrório ouve-se o para-médico perguntar se ele fazia exames do coração com frequência e se era hipertenso.

As vozes vão ficando inaudíveis. O silêncio pinta de branco seu vestido rasgado.