sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Em definitivo
sábado, 6 de fevereiro de 2010
Enciclopédias sempre pesam na bagagem
Agora era tarde para voltar atrás. Estava muito determinada e uma reviravolta nas suas determinações representaria uma frustração por toda vida. Com uma calma de quem está fazendo a coisa certa ela abre uma pasta de couro marrom e no fundo falso coloca uma faca de aço frio e iridescente. Ao encostar-se a uma moeda, faz o barulho do encontro entre iguais. Era sete da manhã e o calor já era insuportável. “País tropical com calor senegalês”, resmungou em meio de um bocejo. Tomou café da manhã em pé e enquanto isso seu gato – Trevisan – enrolava o rabo na sua perna. Ele era sua única companhia em tempos tão difíceis.
Ela ganha a rua e, mesmo atrasada para pegar a lotação, não corre. Prendera o cabelo porque já estava transpirando. O Sol com seus raios convidativos assediava as arvorezinhas das ruas que ela via pela janela. A manhã era muito agradável e só não seria melhor porque a temperatura era alta para o começo do dia. Quando foi descer, a barra do vestido vinho prendeu na porta e, sem paciência para tirar, deu um puxão que rasgou até a altura dos joelhos. “Melhor, hoje está muito quente. Nada me prende” - falou rindo.
No prédio cumprimentou o porteiro que falou sem parar:
- Bom dia!
- Bom dia!
- Calor hoje, não?
- É.
- O patrão já subiu e perguntou pela senhora.
- É mesmo?
- E ele tá com uma cara daquelas...
- Hoje ele vai ficar calmo... Tem carta pra mim?
- Não, tem não – enquanto falava revirava uma caixinha de correspondências – se chegar eu mando lá em cima.
- Está certo então.
- Bom trabalho.
Ao chamar o elevador vê uma moça que era estagiária, e lembra de como começou na empresa. “Santo Deus, eu era uma menina...” Vai sozinha no elevador até o quinto andar, no sexto um rapaz sem uniforme entra falando ao celular:
- Ela também foi assediada? Não acredito! Esse seu Varella dá de cima de todas as moças dessa repartição! Promete vida boa pra todas, né?... Só não dá bola pra mim! – deu uma longa gargalhada e parou no oitavo andar. No nono ela retoca a maquiagem e sente o cabo da faca ao guardar o estojo. Sai, enfim, no décimo terceiro.
- Bom dia – fala jogando a bolsa em cima da mesa.
A sala estava cheia, mas ninguém falou nada. Uma voz tímida e com ares de reprovação:
- Como pode voltar aqui de novo?
Ela começa a trabalhar, mas não consegue se concentrar. Passa por trás dela seu patrão, o doutor Varella. No seu ouvido ele fala para ela ir à sala dele.
Quando ela entra na sala, ele vira um porta retrato da sua mulher com seus filhos. Ela, parada na porta, pergunta o que houve.
Ele se levanta e começa a caminhar na sua direção.
- Eu só quero seu bem... Você acha que... Arrh...
A fala é entrecortada por um grito grave e com um esgar ele cai desfalecido. Com a mão no peito, em cima do coração, ele fixa o olhar nela. Ela passa por ele e desvira o retrato. Abaixa e fecha suas pálpebras.
No meio de um palavrório ouve-se o para-médico perguntar se ele fazia exames do coração com frequência e se era hipertenso.
As vozes vão ficando inaudíveis. O silêncio pinta de branco seu vestido rasgado.