terça-feira, 22 de junho de 2010

Espelho

Vejo-me tão belo.
Invertido e equidistante
Da realidade.
A minha face – tela surreal –
Espia-me de lado
Quando me penteio.
Essa parte é minha,
Reconheço-me e esperneio.
Não sei por que ajo assim
Nesse lago profundo eu não sou feio.

Contrasto esse rosto que dizem ser meu,
Dou um salto rumo ao lago,
Tudo branco
Logo depois, vermelho.
Agora sim não me reconheço.
Questão de tempo.
Tudo tem um recomeço.

sábado, 12 de junho de 2010

Fora de foco

Passeou o olhar pela sala até se deter no pequeno anjo de cristal. Estendeu a mão.

Tão frágil e tão humano. Parece um homem, porque os homens são feitos até de cristal, mas são frágeis como anjos que temem descer do céu e vagar pela Terra. Situação parecida quando eu era criança e não queria abandonar meu lugar no esconde-esconde, mesmo sabendo que se esqueceriam de mim. Você brincava de esconde-esconde, Fernanda?

Ela molhou delicadamente o pincel na tinta vermelha. Limpou o excesso. Deu dois toques minuciosos na tela. Pintava uma paisagem morta.

O que disse?

Ele não respondeu. Ficou olhando para tela que ela estava construindo.

– Como é bonito... Posso sentir?

Ela limpou o pincel na água que lentamente foi se tingindo de vermelho.

– Não está pronto ainda – num gesto atarantado perguntou. – Como assim sentir?

– Assim como eu sinto as pessoas sem tocá-las. Elas só têm que permitir, porque eu não consigo ser sensível com quem não deixa. – Baixou a cabeça como se quisesse chorar.

– Espera eu terminar e aí você sente... – Fez um meneio de cabeça.

Ela pintava e de soslaio ia acompanhando seus movimentos.

– Posso fotografar?

– Pode – respondeu para se ver livre das perguntas.

Ele se levantou e foi com as mãos na boca procurar a câmera. Esbarrou na mesa de centro e desviou o anjo da sua posição inicial. O telefone tocou e num recorte da conversa ela reclamou da doença de Augusto.

– Não suporto mais. A cada dia a doença do Augusto atinge graus mais elevados. Teve um dia em que ele repetiu sem parar Fernanda, Fernanda, Fernanda, Fernanda. Eu estou enlouquecendo junto dele.

Augusto voltou para sala e esbarrou novamente na mesa. Dessa vez o anjo tombou no chão e se partiu em mil caquinhos. Ela murmurou um “ah, não!”. Ele, como em um ritual, tirou o sapato e começou a pisar os cacos.

– O que é isso? Para já! Para, para!

– Eu mereço. É minha punição por ter feito isso.

O pé minando sangue foi tingindo o tapete. Ela conseguiu afastá-lo por um instante.

– Eu vou fazer você pintar paisagens vivas de novo! Eu não vou deixar você morrer. Eu vou te salvar. – ele disse convulso.

Ela sem entender o que despertou a crise tentou acalmá-lo. Em vão. Augusto, num salto de felino, subiu na mesa e tomou impulso. Saltou pela janela do quinto andar.

Ela limpou a tela e saiu desesperada.