sábado, 21 de agosto de 2010

Teresinha

Teresinha é uma moça que gosta de treinar seu francês vendo os filmes da 'Nouvelle Vague.' Quando vai a um café pede sem açúcar e toma sozinha. Usa xadrez em suas blusinhas com pregas e suas saias retrô. Quando vai subir no ônibus deixa todo mundo passar na sua frente, porque considera deselegante ser a primeira. Dizem a ela que isso é desnecessário, mas ela mantém isso por princípio. Quando está no cinema e aparece uma cena de beijo, involuntariamente ela solta um 'ai, ai' e fica nisso, um breve suspiro. Só sai da sala de exibição depois que os créditos finais já desapareceram há alguns minutos. Teresinha gosta de certificar-se que não vai perder uma cena que seria exclusiva para ela. Quando vê alguém mais forte maltratando um mais fraco ela sai de si. Cresce num personagem que é oposto a sua timidez: 'vai brigar com alguém do seu tamanho, ô covarde!' Um professor de filosofia falou que ela está no contra-fluxo da humanidade. Não há pares para essa mocinha nesse mundo, pensou ele. Ela separa moedinhas para os pedintes que já a chamam pelo nome. Outro dia ela foi atropelado por um fusca, mas mesmo mancando recusou ajuda. Ficou até com pena do motorista bigodudo que escutava no rádio do carro 'você é luz, é raio, estrela e luar...' Semana passada ela tirou o gesso. Naquela placa branca já não cabiam mais corações.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um encontro com Shakespeare

1.
Estava encostada numa pilastra olhando para o chão. Esperava para entrar no encontro literário. Quando levantei o olhar um homem me escaneava. Pescorreu cada centímetro da minha saia floreada. Prestava atenção no livro que eu segurava, chegou até a inclinar a cabeça para ler o título. Eu tentei disfarçar, mas ele era obstinado na sua investigação. Estava sem graça, entretanto comecei a olhar também. O meu olhar era desafiador, como se dissesse 'o que você perdeu aqui?' Ele ignorava que eu estava presente, fazia isso com uma naturalidade assustadora. Em um ou dois minutos que parei de olhar ele começou a se aproximar. Eu repetia 'passa reto, passa reto, passa reto' como um mantra.

2.
... passa reto, passa reto... 'Qual seu nome?' Sua voz decidida vibrou no ar. Virei a cabeça e instintivamente dei um passo para trás. Disse o nome. 'Qual sua profissão?' Disse. 'Está esperando muito tempo?' Não, acho que o mesmo tanto que você. Nos vemos lá dentro. Fui dando as costas e entrando. Ele segurou meu braço com força e disse que eu era reencarnação da Julieta. Como assim? Que Julieta? E daí se sou! Fiz força e me desvencilhei.

3.
Ele me segurou de novo, mas dessa vez foi mais incisivo. 'Você é a Julieta e eu sou o Romeu'. Eu ri um riso frouxo que ele não interpretou como um deboche. Falou que eu reagiria assim mesmo. Essa era nossa sina através das idades. A incredulidade no amor. Ele me disse que essa era a décima segunda vez em que nos víamos e nada fazíamos. A última vez foi numa barca no rio Amazonas. Eu gritei: como assim se eu nunca fui ao Amazonas? Ele disse que não havia ido nessa vida. Ah, entendi. Isso é pegadinha de televisão? Falei mergulhando nos seus olhos: desculpe-me seu Romeu,mas eu tenho que entrar. Qualquer dia lemos Shakespeare juntos e aí eu te explico que eu não sou a tal Julieta que o senhor está procurando. Com licença.

4.
Ele me puxou de novo e decididamente dobrou-me e tocou-me os lábios com a boca. Eu não sei o porquê até hoje, mas eu correspondi àquele beijo.

sábado, 7 de agosto de 2010

A vida não basta

Retorço arames para escrever
Quanto mais prática, mais grosso fica o arame

Eu, com mãos de titã, escolho um arame
Com força, arranco-o de onde repousava sem sentido algum

(Eles são imoldáveis, muitas das vezes)
Entretanto, com esmero de ourives, moldo-o

Aprisiono-o em uma escultura móbile
um
a
um
eles vão ganhando sentido

O brilho deixa minha vista embaçada
No fim, não sei o que fiz

Mas já está feito.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não deu para filmar

Vai, meu irmão,
pula de cabeça
Isso vai te fazer feliz
(por um segundo)
depois você esquece
que existiu felicidade
nesse mundo

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Diga a ela que eu sou você

para Caetano Veloso

Escrevo esse poema
Ou seria letra de música?
Em homenagem ao músico que declama
ou reclama minha atenção
cantando fora do tom ou com o Tom

De que me vale a tarde ser linda
se o sorvete já está no fim
e eu não ganhei o beijo da moça?
A brisa bate sem medo e ela me diz
com timidez ou seria porque não sabe mentir?
já está tarde...

Só um som me renova:
sua voz em bossa-nova
no meu peito em harmonia com o samba
digo adeus e fico só, sem mim.

Lanço no papel um verso disperso
Uma lágrima lírica
Um, dois, três
sinto cheiro de flores pisadas
de amor machucado

Um poeta, um amigo
meu amor ao mar
Quem clama é o Caetano
no corpo de outro menino

De Santo Amaro ao Rio de Janeiro
Quero o corpo dessa moça
inteiro
De fevereiro a fevereiro

Marque um encontro com ela
diga que vai lhe dizer verdades
"Vocês não entendem nada"
Peça ao garçon cajuína
Se não tiver peça café
Diga que um amor assim a gente não recusa

Fale que sou seu amigo
que meu amor é puro e verdadeiro
Se começar a chover
entregue a ela esse bilhete
e diga para selá-lo com um beijo

No dia de amanhã
vou te escutar
no silêncio de uma cidade do interior
na minha radiola miocárdica

Um homem do coração de maçã
No mundo de outros sem dentes

domingo, 1 de agosto de 2010