sábado, 25 de setembro de 2010

Por mais que eu tente são só palavras

Abri minha latinha de biscoitos importados (tia Cecília trouxe da Europa pra mim) e tirei de lá de dentro uns pedaços de pão. Esfarelei-os ainda mais e joguei sobre a toalha sobre a grama. Não demorou muito e eles vieram pulando, fazendo algazarra. Entre chilreios e bicadas, eu peguei e colori os mais pálidos, enchi de vida e significado aqueles passarinhos mais foscos. O banquete era espetacular, eu jogava as migalhas e gritava ê, ê! Uma ventania de asas e pura felicidade inundava aquele pequeno quadro, e, apagado como uma fotografia velha, o mundo me olhava.

Com uma rapidez mágica eu tampei a lata, limpei o colo, peguei um fio e, um a um, fui amarrando-os. Pelas patinhas eles iam se enfileirando na linha. Quando vi que estava assaz poético, eu parei. Eles, inertes a dor da prisão, saíram voando. Eu me levantei e sacudi a toalha. De longe a cena era bonita, de perto não passava de um final feliz.

Um dia na vida de um poeta.

sábado, 18 de setembro de 2010

Garoa e neblina

O palco escuro esconde uma menina sentada ao piano, prestes a começar sua apresentação. Ela está nervosa, treme um pouco, mas com uma mão segura a outra. Respira fundo e solta aos pouquinhos. A ansiedade não passa. Ela vê os pais dos seus colegas chegarem. Os seus pais já estão na primeira fila. A câmera já está posicionada nas mãos de sua mãe. A professora faz um sinal de que em três toques ela começará. Ela faz um leve alongamento e estica os longos dedos. Passa a mão pela franja, ajeita o cabelo atrás da orelha. Aperta o laço do vestido de organza azul. Posiciona-se melhor na banqueta. Faz um plano mental de sua execução e de seus próximos passos após a apresentação. Uma trilha sonora começa em sua cabeça. No último toque ela segue o seu fluxo interior. As escalas saem dela e não do instrumento. No final da terceira parte, uma nota se distorce, a outra sai errada. Ela não consegue segurar as águas novas que fervem em seus olhos. O teclado é cúmplice do choro. O final é aplaudido, mas para ela não faz sentido. Ela se levanta, faz reverência a platéia. Sai do palco antes que as palmas cessem. Corre pela coxia até um canto isolado. O perigo de ser só alegria passou. Agora ela já é uma moça em que melancolia garoa de quando em vez.

sábado, 11 de setembro de 2010

Ainda há auroras, apesar de tudo.

Meus dias são amorfos. O céu no teto acima da minha cama não me diz nada, ele existe, sem estrelas e com magnética vontade. O dia nasce bonito, terno. A tarde, quando intensa e luminosa, passa pelo meu rosto. A rotina me dá uma tristeza que espero passar. Eu estou bem, mas não consigo descrever esse estado intermediário entre o inteiro e o nada. Sou um círculo que se completa no vazio. Com focinho de lobo solitário sinto que alguém pode vir. Tenho medo. Bebo água e passa. Não pense que uma pessoa com tanta força interior pode se conservar sendo ela mesma. O meu novo caráter ou a falta dele me fez perder todo o interesse pelas coisas. A falta de dignidade dos seres é considerável. As exceções não me são palpáveis.

Tenho tido maus momentos, mas reajo. Porque eu faço isso? A minha revolta renascentista não muda um átimo de segundo na volta da Terra. Ah, comi pão com manteiga pela manhã.

A meninas correm na praça. A meninas de maiô. As meninas de saias curtas. As meninas tristes. As meninas. Os meninos correm na praça. Os meninos de uniforme. Os meninos nunca tristes. Os meninos. A dinâmica vital e normal. Essa é a regra.

O sol batendo nas frutas expostas na feira realça-lhes a cor. A melancia parece estar dulcíssima. Não gosto de melancia. Não tem caju. Queria um.

Fiz um poema que eu não gostei, mas me disseram ser bom:
'[...] a terceira palavra
canta no escuro
um canto de grilo
na noite ensolarada.'

Vejo crianças pedindo ajuda e penso em sentar-me ao lado delas e empunhar minha placa. Tanta pobreza e miséria. Miséria de alma.

Olhei o horóscopo. Não vou sair hoje.

Finjo muito. Vou parar com isso.

É pena o dia estar chovendo. Fora isso, vai se vivendo.

sábado, 4 de setembro de 2010

Dora




Adeus, Dora!
Olhou-me em cheiro
Aroma pretérito
Amor mais-que-perfeito

Jaz em mim
o
Jasmim

Ou não

Sabe aquela história de que em time que está ganhando não se mexe? O Ladston não sabe. Tudo pode estar correndo muito bem, basta pedirem a sua opinião e a coisa desanda. Essa não é sua intenção, ele não é pessimista, muito pelo contrário, tem todos os livros do Augusto Cury e adora citá-lo quando tem que justificar suas respostas: "use suas falhas para esculpir a serenidade" ele diz com os olhos semicerrados. Todos dizem que ele é indeciso (ele é indeciso!), mas quando ouve isso ele dispara suas convicções com um sorriso escancarado, dando entonação a sua voz que lembra um pouco a do Arnaldo Antunes: aborto, casamento guei, ditadores, relações diplomáticas com o Irã, tudo isso passa pelo seu discurso, mas o que ele fala no início já é outra coisa no final. No período de eleição, Ladston sente um arrebatador sentimento no seu coração. Muda o seu escolhido várias vezes por dia. Acorda como um direitista e à noite é da esquerda-liberal. Na última eleição, no instante seguinte em que apertou a tecla verde para confirmar, se arrependeu e soltou um gutural sussuro "Ah, não!" Nessa, ele já decidiu: não vai votar. Mas isso também pode mudar.