Umedeceu a ponta do dedo. Passeou o olhar pela página com uma calma tibetana. Como um pássaro que entra pela janela sem motivo, uma palavra perturbou a sua paz. Na sua face surgiu uma interrogação, um levantar de sobrancelha, um esgar de incompreensão. A leitura que até então fluía é interrompida. Ele estacou naquela palavra que não lhe dizia nada, mas, no momento, era a razão de sua vida. Tinha que decifrar aquela Esfinge que no deserto de letrinhas miúdas o ameaçava.
Tentou ir pelo contexto, pelas experiências passadas, pela numerologia, por dedução. Nada. Nada lhe dava coragem para seguir adiante. “Pode ser isso, ou não”. Repetia quase delirante. A palavra – imóvel – era como dois olhos de gato na escuridão. Perseguia-o, mas não se revelava. Arrependeu-se de não ter comprado um dicionário para lançar mão em situações parecidas. “Amanhã eu compro”. Passou uma marca texto fosforescente na palavra. Ela, marcada, não iria fugir.
O primeiro sinal da noite anterior foi ao acordar. Ficou parado, olhando para sua mulher por um quarto de hora. Saiu da cama felinamente. Sem fazer o mínimo ruído tomou banho, se trocou com dificuldade. Em pé, comeu pão sem manteiga e tomou café num pires, como um gato.
Na rua, ficou perdido a caminho do trabalho. Fazia anos que metodicamente seguia pelas mesmas ruas. Os meninos de rua que ele encontrava pelo caminho recebiam todos os dias moedinhas de um real que ele deixava no porta-luvas para esse fim. Naquele dia, ele passou reto. Furou o sinal vermelho. Chegou ofegante na redação. Subiu os andares pela escada, para evitar encontros. Não podia mais ignorar tais fatos. Algo muito estranho estava acontecendo. Ligou para um médico amigo. “Estou me esquecendo das palavras”, ele disse baixinho para que os colegas não o ouvissem. Posso ir aí agora? O médico assentiu. Ele saiu tropeçando nas pessoas, em total desalinho. A gravata frouxa lhe emprestava ares de clown.
Doutor, eu sei que isso parece loucura, mas é verdade. Só consegui falar com você porque fiquei ensaiando antes. Insistiu e tirou do bolso da camisa o rascunho da conversa. “Preencha essa ficha enquanto eu visto a minha luva”, disse o médico resmungando uma queixa inaudível. Doutor, eu não sei mais meu nome, vou conferir na carteira de identidade. Falou e sua voz parecia sair descompassada, ora feminina ora grave. O médico fez todos os procedimentos que estavam ao seu alcance, examinou-lhe o tórax, as costas, a boca. Não havia nada de anormal. “Isso deve ser estresse, sua vida anda muito agitada”. Saiu do consultório com um ansiolítico.
Na volta para casa não hesitou, deixou o carro no estacionamento do consultório e pegou um táxi. “Pra onde vamos?”, perguntou o motorista com um palito na boca e jeito de quem se faz amigo. Pra minha casa. O taxista mirou o retrovisor e pediu o endereço. Ele passou o celular e pediu que ele ligasse para sua casa, sua mulher iria lhe guiar. A mulher pagou a corrida, levou-o para dentro e na cama ele esperou pelo remédio. Adormeceu.
Quando acordou emitiu uns grunhidos incognoscíveis. Seus olhos vacilavam no foco. Não sabia onde estava e muito menos quem era aquela mulher jovem e bonita, mas com um quê de tristeza no olhar que lhe desnudava. Ele estava nu, embora vestido. Sentia vergonha, como se sua alma fosse transparente e todos pudessem ver seus pensamentos escorrendo feito mel pelo seu corpo. Talvez escorressem mesmo, porque sua mulher entendeu o que estava fazendo pulsar as fibras mais íntimas de seu coração. Sumiu de sua vista e quando voltou trazia um pesado livro. Lembrou-se de sua professora do jardim: “o mundo está todo dentro do dicionário”. A lembrança, em meio à bruma do passado o impeliu a abrir o coletivo de palavras. De súbito foi retirado do seu estado de coma. O dedo parado em cima da palavra trouxe de novo a paz. Seu léxico se atualizou na sua mente. Ele voltou à normalidade e com um abraço de anjo acolhedor disse no ouvido da sua amada a palavra que encerrava todas.
A mais bela verdade do mundo.
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