sábado, 14 de agosto de 2010

Um encontro com Shakespeare

1.
Estava encostada numa pilastra olhando para o chão. Esperava para entrar no encontro literário. Quando levantei o olhar um homem me escaneava. Pescorreu cada centímetro da minha saia floreada. Prestava atenção no livro que eu segurava, chegou até a inclinar a cabeça para ler o título. Eu tentei disfarçar, mas ele era obstinado na sua investigação. Estava sem graça, entretanto comecei a olhar também. O meu olhar era desafiador, como se dissesse 'o que você perdeu aqui?' Ele ignorava que eu estava presente, fazia isso com uma naturalidade assustadora. Em um ou dois minutos que parei de olhar ele começou a se aproximar. Eu repetia 'passa reto, passa reto, passa reto' como um mantra.

2.
... passa reto, passa reto... 'Qual seu nome?' Sua voz decidida vibrou no ar. Virei a cabeça e instintivamente dei um passo para trás. Disse o nome. 'Qual sua profissão?' Disse. 'Está esperando muito tempo?' Não, acho que o mesmo tanto que você. Nos vemos lá dentro. Fui dando as costas e entrando. Ele segurou meu braço com força e disse que eu era reencarnação da Julieta. Como assim? Que Julieta? E daí se sou! Fiz força e me desvencilhei.

3.
Ele me segurou de novo, mas dessa vez foi mais incisivo. 'Você é a Julieta e eu sou o Romeu'. Eu ri um riso frouxo que ele não interpretou como um deboche. Falou que eu reagiria assim mesmo. Essa era nossa sina através das idades. A incredulidade no amor. Ele me disse que essa era a décima segunda vez em que nos víamos e nada fazíamos. A última vez foi numa barca no rio Amazonas. Eu gritei: como assim se eu nunca fui ao Amazonas? Ele disse que não havia ido nessa vida. Ah, entendi. Isso é pegadinha de televisão? Falei mergulhando nos seus olhos: desculpe-me seu Romeu,mas eu tenho que entrar. Qualquer dia lemos Shakespeare juntos e aí eu te explico que eu não sou a tal Julieta que o senhor está procurando. Com licença.

4.
Ele me puxou de novo e decididamente dobrou-me e tocou-me os lábios com a boca. Eu não sei o porquê até hoje, mas eu correspondi àquele beijo.

2 comentários:

  1. Poxa, João... que coisa mais linda!
    Seus textos me lembram um pouco os contos da Lygia F. Telles.

    Me arrepiei em "Eu gritei: como assim se eu nunca fui no Amazonas? Ele disse que não havia ido nessa vida."

    Abraço.

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  2. aí tá vendo? tb acho parecido com os contos da Lygia. Ah só não gostei mais pq já sabia. hahaha Mas de qualquer maneira amei. amei o escanear hahaha.

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