segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Muito além do seu sorriso em Montreal

Na paisagem fria
a neve que derrete
se mistura a grama
fundindo-se às cores
que pintam sua camisa,
as folhas que voam,
a placa de trânsito
e o dia
que anoitece devagar.

sábado, 16 de julho de 2011

sábado, 12 de março de 2011

Os treze degraus


Passei a chave na porta e desci aqueles treze degraus que separavam a minha casa da rua. No sétimo degrau, olhei para o céu: parecia que ia chover à noite. Atravessei por não mais de dez minutos a minha rua, até chegar à avenida central. Lá esperei pela minha carona que, como de costume, atrasou. Entrei apressado no carro e nem percebi que havia uma pessoa no banco de trás. Quando notei, tentei falar alguma coisa, mas seus olhos fixos em mim me calaram.

Por sorte o percurso foi rápido e em cinco minutos já estávamos na Maison de la musique. Eu desci primeiro porque ainda tinha que comprar o ingresso. Vi dois conhecidos na fila e fiquei conversando com eles até que a campainha despertou o bilheteiro que fez a fila andar.

No palco, a cantora já estava posicionada na sua marcação. Ela olhava placidamente as pessoas entrando e tomando seus lugares. Reconheci dois ou três artistas na platéia. Um deles, Rangel Legrand, sentou-se ao meu lado. O palco era bem pequeno e muito perto da plateia: caso ela quisesse, poderia dar a mão para quem estava na primeira fila. A fumaça dava a impressão que a artista desaparecia na nossa frente.

Depois de um tempo eu percebi que a cantora me olhava fixamente. Eu tentei disfarçar, mas como ela insistia, eu correspondi. Quando viu que eu também olhava, fez um sinal me chamando. Não acreditei. Legrand, que estava ao meu lado, pegou no meu braço e disse que ela estava me chamando. Levantei e, sem saber o que fazia, segui em direção ao palco.

Tive a impressão de ter ouvido uma música muito suave. Ultrapassei aquela cortina fina que nos separava e senti uma mão no meu ombro, quando olhei, a grande estrela da noite estava com um caderno nas mãos. O que é isso, perguntei. Ela disse que eu deveria compor uma música para ela cantar em menos de trinta minutos. Eu disse que era impossível, mas ela estava irredutível. Ameaçou até não fazer o show.

Eu não posso, gritei. Ela me ofereceu um doce e disse que um jornalista que escrevia crônicas tão bonitas no Le oiseau vert conseguiria fazer qualquer encomenda. Argumentei que não era tão fácil assim, mas que se ela me desse uma semana talvez eu conseguisse. Ela sorriu como uma adolescente desvairada. Deixou-me só no camarim com um cigarro que demorou a apagar.

A música que ouvira vinha de um toca discos. Ela estava escutando Bárbara. Eu coloquei na faixa que mais gostava. Ouvi a terceira campainha e escutei o seu boa-noite para a plateia. Em poucos minutos ela já era aplaudida. Eu comecei a escrever uma poesia que não sabia onde ia terminar. Inventei sentimentos, desfiei rosários de lamentações, matei amantes, ressuscitei amores, criei uma melodia e cantarolei num gravador a minha composição. Antes do bis ela veio conferir se estava tudo certo. Entreguei a ela o caderno e cantei umas três vezes até que ela pegasse o ritmo. Fui para a plateia e escutei o som líquido que ela emitia. Parecia um pássaro em seu trinado matinal. Já passava de meia-noite.

Na manhã seguinte, levantei-me bem cedo e fui comprar o disco que ela escutava. Procurei por todo comércio, mas ninguém conhecia. No caminho de volta fui me esquecendo lentamente das melodias da noite anterior. Na banca da rua principal, vi um jornal falando que Rangel Legrand havia morrido. Ainda perplexo subi os degraus que separavam a minha casa da rua. No sétimo degrau, olhei para o céu: chovia.

domingo, 31 de outubro de 2010

Les amours imaginaires

para Hilda Hilst

O amor dele existe no espaço. A simples demonstração de afeto o faz secretar nácar num sorriso, num aceno ou numa gentileza. Esse sentimento flutuante vai e vem na paciência dos dias, reluzindo no bojo de uma garrafa. O tempo passa e ele não esquece.

A cada noite o pensamento escorre pelo seu corpo como uma hemorragia: amanhã sim, ele virá.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Poemas breves

Refletidas na água
as árvores
dançam como odaliscas

***

O Sol no espelho
é laranja
ou vermelho?

***

Grande diapasão
afina o vento
do sim e do não

***

No meio da melodia
do meio-dia
o universo ria

***

Na mata fechada
a noite faz fotossíntese
no escuro

***

Minha loucura é
adestrada
pela esperança de cura

***

Chuva na piscina
A gota cai
e se alucina

sábado, 25 de setembro de 2010

Por mais que eu tente são só palavras

Abri minha latinha de biscoitos importados (tia Cecília trouxe da Europa pra mim) e tirei de lá de dentro uns pedaços de pão. Esfarelei-os ainda mais e joguei sobre a toalha sobre a grama. Não demorou muito e eles vieram pulando, fazendo algazarra. Entre chilreios e bicadas, eu peguei e colori os mais pálidos, enchi de vida e significado aqueles passarinhos mais foscos. O banquete era espetacular, eu jogava as migalhas e gritava ê, ê! Uma ventania de asas e pura felicidade inundava aquele pequeno quadro, e, apagado como uma fotografia velha, o mundo me olhava.

Com uma rapidez mágica eu tampei a lata, limpei o colo, peguei um fio e, um a um, fui amarrando-os. Pelas patinhas eles iam se enfileirando na linha. Quando vi que estava assaz poético, eu parei. Eles, inertes a dor da prisão, saíram voando. Eu me levantei e sacudi a toalha. De longe a cena era bonita, de perto não passava de um final feliz.

Um dia na vida de um poeta.

sábado, 18 de setembro de 2010

Garoa e neblina

O palco escuro esconde uma menina sentada ao piano, prestes a começar sua apresentação. Ela está nervosa, treme um pouco, mas com uma mão segura a outra. Respira fundo e solta aos pouquinhos. A ansiedade não passa. Ela vê os pais dos seus colegas chegarem. Os seus pais já estão na primeira fila. A câmera já está posicionada nas mãos de sua mãe. A professora faz um sinal de que em três toques ela começará. Ela faz um leve alongamento e estica os longos dedos. Passa a mão pela franja, ajeita o cabelo atrás da orelha. Aperta o laço do vestido de organza azul. Posiciona-se melhor na banqueta. Faz um plano mental de sua execução e de seus próximos passos após a apresentação. Uma trilha sonora começa em sua cabeça. No último toque ela segue o seu fluxo interior. As escalas saem dela e não do instrumento. No final da terceira parte, uma nota se distorce, a outra sai errada. Ela não consegue segurar as águas novas que fervem em seus olhos. O teclado é cúmplice do choro. O final é aplaudido, mas para ela não faz sentido. Ela se levanta, faz reverência a platéia. Sai do palco antes que as palmas cessem. Corre pela coxia até um canto isolado. O perigo de ser só alegria passou. Agora ela já é uma moça em que melancolia garoa de quando em vez.

sábado, 11 de setembro de 2010

Ainda há auroras, apesar de tudo.

Meus dias são amorfos. O céu no teto acima da minha cama não me diz nada, ele existe, sem estrelas e com magnética vontade. O dia nasce bonito, terno. A tarde, quando intensa e luminosa, passa pelo meu rosto. A rotina me dá uma tristeza que espero passar. Eu estou bem, mas não consigo descrever esse estado intermediário entre o inteiro e o nada. Sou um círculo que se completa no vazio. Com focinho de lobo solitário sinto que alguém pode vir. Tenho medo. Bebo água e passa. Não pense que uma pessoa com tanta força interior pode se conservar sendo ela mesma. O meu novo caráter ou a falta dele me fez perder todo o interesse pelas coisas. A falta de dignidade dos seres é considerável. As exceções não me são palpáveis.

Tenho tido maus momentos, mas reajo. Porque eu faço isso? A minha revolta renascentista não muda um átimo de segundo na volta da Terra. Ah, comi pão com manteiga pela manhã.

A meninas correm na praça. A meninas de maiô. As meninas de saias curtas. As meninas tristes. As meninas. Os meninos correm na praça. Os meninos de uniforme. Os meninos nunca tristes. Os meninos. A dinâmica vital e normal. Essa é a regra.

O sol batendo nas frutas expostas na feira realça-lhes a cor. A melancia parece estar dulcíssima. Não gosto de melancia. Não tem caju. Queria um.

Fiz um poema que eu não gostei, mas me disseram ser bom:
'[...] a terceira palavra
canta no escuro
um canto de grilo
na noite ensolarada.'

Vejo crianças pedindo ajuda e penso em sentar-me ao lado delas e empunhar minha placa. Tanta pobreza e miséria. Miséria de alma.

Olhei o horóscopo. Não vou sair hoje.

Finjo muito. Vou parar com isso.

É pena o dia estar chovendo. Fora isso, vai se vivendo.

sábado, 4 de setembro de 2010

Dora




Adeus, Dora!
Olhou-me em cheiro
Aroma pretérito
Amor mais-que-perfeito

Jaz em mim
o
Jasmim

Ou não

Sabe aquela história de que em time que está ganhando não se mexe? O Ladston não sabe. Tudo pode estar correndo muito bem, basta pedirem a sua opinião e a coisa desanda. Essa não é sua intenção, ele não é pessimista, muito pelo contrário, tem todos os livros do Augusto Cury e adora citá-lo quando tem que justificar suas respostas: "use suas falhas para esculpir a serenidade" ele diz com os olhos semicerrados. Todos dizem que ele é indeciso (ele é indeciso!), mas quando ouve isso ele dispara suas convicções com um sorriso escancarado, dando entonação a sua voz que lembra um pouco a do Arnaldo Antunes: aborto, casamento guei, ditadores, relações diplomáticas com o Irã, tudo isso passa pelo seu discurso, mas o que ele fala no início já é outra coisa no final. No período de eleição, Ladston sente um arrebatador sentimento no seu coração. Muda o seu escolhido várias vezes por dia. Acorda como um direitista e à noite é da esquerda-liberal. Na última eleição, no instante seguinte em que apertou a tecla verde para confirmar, se arrependeu e soltou um gutural sussuro "Ah, não!" Nessa, ele já decidiu: não vai votar. Mas isso também pode mudar.



sábado, 21 de agosto de 2010

Teresinha

Teresinha é uma moça que gosta de treinar seu francês vendo os filmes da 'Nouvelle Vague.' Quando vai a um café pede sem açúcar e toma sozinha. Usa xadrez em suas blusinhas com pregas e suas saias retrô. Quando vai subir no ônibus deixa todo mundo passar na sua frente, porque considera deselegante ser a primeira. Dizem a ela que isso é desnecessário, mas ela mantém isso por princípio. Quando está no cinema e aparece uma cena de beijo, involuntariamente ela solta um 'ai, ai' e fica nisso, um breve suspiro. Só sai da sala de exibição depois que os créditos finais já desapareceram há alguns minutos. Teresinha gosta de certificar-se que não vai perder uma cena que seria exclusiva para ela. Quando vê alguém mais forte maltratando um mais fraco ela sai de si. Cresce num personagem que é oposto a sua timidez: 'vai brigar com alguém do seu tamanho, ô covarde!' Um professor de filosofia falou que ela está no contra-fluxo da humanidade. Não há pares para essa mocinha nesse mundo, pensou ele. Ela separa moedinhas para os pedintes que já a chamam pelo nome. Outro dia ela foi atropelado por um fusca, mas mesmo mancando recusou ajuda. Ficou até com pena do motorista bigodudo que escutava no rádio do carro 'você é luz, é raio, estrela e luar...' Semana passada ela tirou o gesso. Naquela placa branca já não cabiam mais corações.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um encontro com Shakespeare

1.
Estava encostada numa pilastra olhando para o chão. Esperava para entrar no encontro literário. Quando levantei o olhar um homem me escaneava. Pescorreu cada centímetro da minha saia floreada. Prestava atenção no livro que eu segurava, chegou até a inclinar a cabeça para ler o título. Eu tentei disfarçar, mas ele era obstinado na sua investigação. Estava sem graça, entretanto comecei a olhar também. O meu olhar era desafiador, como se dissesse 'o que você perdeu aqui?' Ele ignorava que eu estava presente, fazia isso com uma naturalidade assustadora. Em um ou dois minutos que parei de olhar ele começou a se aproximar. Eu repetia 'passa reto, passa reto, passa reto' como um mantra.

2.
... passa reto, passa reto... 'Qual seu nome?' Sua voz decidida vibrou no ar. Virei a cabeça e instintivamente dei um passo para trás. Disse o nome. 'Qual sua profissão?' Disse. 'Está esperando muito tempo?' Não, acho que o mesmo tanto que você. Nos vemos lá dentro. Fui dando as costas e entrando. Ele segurou meu braço com força e disse que eu era reencarnação da Julieta. Como assim? Que Julieta? E daí se sou! Fiz força e me desvencilhei.

3.
Ele me segurou de novo, mas dessa vez foi mais incisivo. 'Você é a Julieta e eu sou o Romeu'. Eu ri um riso frouxo que ele não interpretou como um deboche. Falou que eu reagiria assim mesmo. Essa era nossa sina através das idades. A incredulidade no amor. Ele me disse que essa era a décima segunda vez em que nos víamos e nada fazíamos. A última vez foi numa barca no rio Amazonas. Eu gritei: como assim se eu nunca fui ao Amazonas? Ele disse que não havia ido nessa vida. Ah, entendi. Isso é pegadinha de televisão? Falei mergulhando nos seus olhos: desculpe-me seu Romeu,mas eu tenho que entrar. Qualquer dia lemos Shakespeare juntos e aí eu te explico que eu não sou a tal Julieta que o senhor está procurando. Com licença.

4.
Ele me puxou de novo e decididamente dobrou-me e tocou-me os lábios com a boca. Eu não sei o porquê até hoje, mas eu correspondi àquele beijo.

sábado, 7 de agosto de 2010

A vida não basta

Retorço arames para escrever
Quanto mais prática, mais grosso fica o arame

Eu, com mãos de titã, escolho um arame
Com força, arranco-o de onde repousava sem sentido algum

(Eles são imoldáveis, muitas das vezes)
Entretanto, com esmero de ourives, moldo-o

Aprisiono-o em uma escultura móbile
um
a
um
eles vão ganhando sentido

O brilho deixa minha vista embaçada
No fim, não sei o que fiz

Mas já está feito.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não deu para filmar

Vai, meu irmão,
pula de cabeça
Isso vai te fazer feliz
(por um segundo)
depois você esquece
que existiu felicidade
nesse mundo

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Diga a ela que eu sou você

para Caetano Veloso

Escrevo esse poema
Ou seria letra de música?
Em homenagem ao músico que declama
ou reclama minha atenção
cantando fora do tom ou com o Tom

De que me vale a tarde ser linda
se o sorvete já está no fim
e eu não ganhei o beijo da moça?
A brisa bate sem medo e ela me diz
com timidez ou seria porque não sabe mentir?
já está tarde...

Só um som me renova:
sua voz em bossa-nova
no meu peito em harmonia com o samba
digo adeus e fico só, sem mim.

Lanço no papel um verso disperso
Uma lágrima lírica
Um, dois, três
sinto cheiro de flores pisadas
de amor machucado

Um poeta, um amigo
meu amor ao mar
Quem clama é o Caetano
no corpo de outro menino

De Santo Amaro ao Rio de Janeiro
Quero o corpo dessa moça
inteiro
De fevereiro a fevereiro

Marque um encontro com ela
diga que vai lhe dizer verdades
"Vocês não entendem nada"
Peça ao garçon cajuína
Se não tiver peça café
Diga que um amor assim a gente não recusa

Fale que sou seu amigo
que meu amor é puro e verdadeiro
Se começar a chover
entregue a ela esse bilhete
e diga para selá-lo com um beijo

No dia de amanhã
vou te escutar
no silêncio de uma cidade do interior
na minha radiola miocárdica

Um homem do coração de maçã
No mundo de outros sem dentes