sábado, 12 de junho de 2010

Fora de foco

Passeou o olhar pela sala até se deter no pequeno anjo de cristal. Estendeu a mão.

Tão frágil e tão humano. Parece um homem, porque os homens são feitos até de cristal, mas são frágeis como anjos que temem descer do céu e vagar pela Terra. Situação parecida quando eu era criança e não queria abandonar meu lugar no esconde-esconde, mesmo sabendo que se esqueceriam de mim. Você brincava de esconde-esconde, Fernanda?

Ela molhou delicadamente o pincel na tinta vermelha. Limpou o excesso. Deu dois toques minuciosos na tela. Pintava uma paisagem morta.

O que disse?

Ele não respondeu. Ficou olhando para tela que ela estava construindo.

– Como é bonito... Posso sentir?

Ela limpou o pincel na água que lentamente foi se tingindo de vermelho.

– Não está pronto ainda – num gesto atarantado perguntou. – Como assim sentir?

– Assim como eu sinto as pessoas sem tocá-las. Elas só têm que permitir, porque eu não consigo ser sensível com quem não deixa. – Baixou a cabeça como se quisesse chorar.

– Espera eu terminar e aí você sente... – Fez um meneio de cabeça.

Ela pintava e de soslaio ia acompanhando seus movimentos.

– Posso fotografar?

– Pode – respondeu para se ver livre das perguntas.

Ele se levantou e foi com as mãos na boca procurar a câmera. Esbarrou na mesa de centro e desviou o anjo da sua posição inicial. O telefone tocou e num recorte da conversa ela reclamou da doença de Augusto.

– Não suporto mais. A cada dia a doença do Augusto atinge graus mais elevados. Teve um dia em que ele repetiu sem parar Fernanda, Fernanda, Fernanda, Fernanda. Eu estou enlouquecendo junto dele.

Augusto voltou para sala e esbarrou novamente na mesa. Dessa vez o anjo tombou no chão e se partiu em mil caquinhos. Ela murmurou um “ah, não!”. Ele, como em um ritual, tirou o sapato e começou a pisar os cacos.

– O que é isso? Para já! Para, para!

– Eu mereço. É minha punição por ter feito isso.

O pé minando sangue foi tingindo o tapete. Ela conseguiu afastá-lo por um instante.

– Eu vou fazer você pintar paisagens vivas de novo! Eu não vou deixar você morrer. Eu vou te salvar. – ele disse convulso.

Ela sem entender o que despertou a crise tentou acalmá-lo. Em vão. Augusto, num salto de felino, subiu na mesa e tomou impulso. Saltou pela janela do quinto andar.

Ela limpou a tela e saiu desesperada.

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